Um menino muito especial
No outro dia parei o carro à porta do café e disse ao Guilherme que fosse comprar pão. Viu entrar no estabelecimento e esperei ansiosa, saiu passado um minuto e pensei que não tinha conseguido. Contudo olhei para ele e vi que trazia um saco de papel, entrou no carro, entregou-me o pão e o troco e eu fiquei eufórica. Assim que cheguei a casa corri a contar ao pai que ficou igualmente feliz. Vocês perguntam tanta excitação porque? E eu passo a explicar.
Resolvi falar-vos um pouco sobre o meu Guilherme que é a criança mais carinhosa do mundo. Foi um bebé calmo e fácil de criar, até aos 2 anos e meio nunca notei nenhum problema com o menino. Por volta desta altura comecei a estranha o menino não falar, questionei a médica que me disse para não me preocupar porque ainda não era tarde. Passaram-se mais uns tempos e o Guilherme nada de falar, fui à consulta dos 3 anos e tornei a referir à medica as minhas preocupações. Mais uma vez a médica desvalorizou a situação,perguntou-me se quando o chamava ele não vinha. Eu respondi que sim mas bati o pé pois não me parecia normal que ele não dissesse nada. Fomos então encaminhados para o Otorrino, a Drª que nos atendeu perguntou-me o que me preocupava. Eu referi que o Guilherme comunicava por sons e que não dizia nada de nada, nem mãe, nem pai, nem água...
Fizeram então exames ao menino e diagnosticaram-lhe otites cerosas. Foi-me explicado que este tipo de problema causa muita confusão na cabeça da criança porque a criança tão depressa ouve como de seguida não ouve. Passaram-me um tratamento para fazer durante um mês e depois faria um mês de pausa e seria reavaliado, existia a possibilidade de ter que ser operado.
Passou-se um mês e notamos logo uma diferença enorme, já começava a falar se bem que com muita dificuldade. Entretanto começou a frequentar a pré-primaria. Gostava muito da escola e estava sempre desejoso de lá ficar.
Passados poucos dias fui convocada pela educadora da pré-primaria. Estavam muito preocupadas porque o Guilherme não falava nada, passava o dia todo sem abrir a boca e queriam saber se ele era assim em casa .Aparentemente estava bem enquadrado, brincava com as crianças todas mas sem abrir a boca. Vim de lá preocupada e resolvi conversar com o meu filho. Quando lhe perguntei porque é que não falava na escola respondeu-me que os meninos lhe tapavam a boca e diziam que ele não sabia falar. Fiquei estupefacta bem sei que as crianças são cruéis, em parte devido à sua inocência, mas eu não estava preparada para aquilo. O minha primeira reacção foi pensar em tira-lo da escola mas depois reflecti melhor e verifiquei que não seria a solução ideal.
À noite conversei com o marido e decidimos que o devíamos deixá-lo travar as próprias batalhas. Explicamos-lhe que devia falar se quisesse e não devia deixar que o impedissem. Dissemos-lhe que não havia mal em não falar correctamente pois ainda estava a aprender e logo logo estaria a falar sem problemas. Estava a fazer terapia da fala uma vez por semana e as expectativas estavam elevadas (por norma esta terapia é feita um pouco mais tarde, no inicio da primária, mas como ele tinha tanta dificuldade a terapeuta não pensou duas vezes).
Voltamos ao Otorrino e continuava tudo na mesma, repetimos a medicação e ficamos a aguardar a operação. Foi chamado em Fevereiro e a operação correu bem.
Por esta altura fui novamente chamada à escola. A educadora disse-me que o Guilherme estava um pouco melhor mas estava preocupada pois ele estava sempre a abanar-se ou a mexer as mãos e os pés. Pediu-me que o levasse a uma consulta de desenvolvimento e forneceu-me um relatório.
Fomos à consulta de desenvolvimento, o menino foi avaliado e deram-nos papeis que deveríamos trazer preenchidos. Preenchemos os que eram para os pais e entregamos os que eram para a educadora. Voltamos a uma consulta um mês depois com todos os documentos e foi nos dito que o Guilherme era ligeiramente hiperactivo e tinha défice de atenção. Teria que ser acompanhado na consulta de forma a verificarem a sua evolução. Foi-me dito que teria que ser medicado mas que costumavam adiar essa medicação até à entrada na primária. Devo dizer que foi muito difícil para mim ouvir isto tudo, então eu que sou quase anti-medicação. Só pensava se o menino seria assim por algum erro nosso.
Da consulta de desenvolvimento encaminharam o Guilherme para uma consulta de medicina de reabilitação física pois tinha adquirido um vicio de caminhar em bicos dos pés. Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido ao Guilherme. Deparamos-nos com uma doutora fabulosa que viu no Guilherme o que eu via como mãe, viu como ele era esperto, atencioso e meigo e que decidiu que devíamos lutar pelo Guilherme. Tratou de lhe arranjar terapia ocupacional não só para o ajudar a caminhar melhor como na motricidade fina.
Passamos a ir à terapia duas vezes por semana, a terapeuta é uma pessoa fantástica que ajudou imenso o Guilherme. Fizeram-lhe uma talas para os pés para ele dormir de noite, tinham como objectivo forçar o pé a estar na posição normal contrariando assim a posição de bicos de pés. Infelizmente o Guilherme fez um eczema nas pernas e não pode usar as talas. De qualquer forma a terapia aos poucos foi conseguindo ajudá-lo.
Passados uns meses voltamos à consulta de medicina de reabilitação física para uma reavaliação. O Guilherme estava muito melhor dos pés mas continuava muito tímido. Era incapaz de manter contacto visual ou dialogo com pessoas estranhas. Por vezes isto até acontecia com pessoas conhecidas mas com quem tinha menos contacto, principalmente adultos. A doutora disse-me que o menino deveria fazer psicologia e que poderia faze-la ali caso eu estivesse interessada. Claro que acedi e começamos uma nova consulta.
O inicio da psicologia correu muito bem, curiosamente o Guilherme nunca se mostrou tímido com a doutora, iniciou dialogo com ela logo na primeira sessão. E a partir dai foi vê-lo florescer. Íamos ao hospital todas as quartas e sextas feiras. Ás quartas fazíamos terapia ocupacional. Ás sextas começávamos com terapia de fala, seguíamos para a terapia ocupacional e depois psicologia. Eu andava estafada de correr para o hospital, correr para o trabalho, correr para casa. O Leonardo tinha pouco mais de uma ano e precisava de atenção. O marido trabalhava à noite entre 10 a 12H seguidas pelo que nem tinha coragem de lhe pedir nada. Mas depois começaram a vir os resultados e eu ganhei novo animo. A cada semana eu via-lo crescer e o meu coração transbordava de orgulho.
Continuámos estas terapias vários anos. Primeiro teve alta da terapia da fala. De seguida teve que deixar a terapia ocupacional quando eu entrei em gravidez de risco dos gémeos. Já não voltou a frequentar pois tanto eu como a terapeuta, que o seguia actualmente, não vimos necessidade. Mantém a psicologia que tanto o ajuda no dia a dia.
Não deixou de ter hiperactividade, não deixou de ter défice de atenção mas tenho orgulho em dizer que não toma medicação. Fui a semana passada receber as notas e passou para o terceiro ano com Bom a Português, Bom a Estudo do Meio e Muito Bom a Matemática. Conseguiu isto tudo sem medicação e com muito trabalho. Só posso agradecer as maravilhosas profissionais que o acompanharam e ajudaram a desabrochar pois sem elas nada disto teria sido possível. Agradeço também à professora fantástica que o acompanhou nestes dois primeiros anos.
Em Setembro começamos numa nova escola, um novo desafio mas estou certa que o vai superar como a todos os outros. Digo-lhe sempre que não há nada no mundo que ele não seja capaz de fazer só tem que ter força de vontade. Não consigo e desisto são palavras que não existem no nosso vocabulário.
Percebem agora o meu orgulho quando o vejo conseguir fazer um simples recado? Foi mais uma pequena vitória.